Sem medo de cair na generalização quanto ao intricado processo da arte, existem basicamente dois tipos de criação: ou você tem uma janela inteira para jogá-la no chão e juntar os pedaços em um todo, ou você começa apenas com os pedaços no chão, sem janela, perspectiva ou todo, apenas uma vaga idéia da soma das partes. A primeira técnica é mais comum entre aqueles que já sabem do começo, meio e fim de seus processos. A segunda só é mesmo usada por quem não tem muito a perder, afinal de contas, é difícil começar sem saber para onde ir. Samuel Casal, fragmentado em idéias que vem e vão muito rápido, é daqueles que preferem começar pelos caquinhos e, mesmo que sem intenção de juntá-los, termina sendo acometido por um talento próprio – ora chamado de “feeling” – para encaixar as peças, em um processo 90% intuitivo, 10% vicioso.
E em função dessa disfunção natural, somente agora, após 18 anos como ilustrador profissional, é que Samuel Casal criou coragem para lançar seu primeiro trabalho sozinho (ou quase, já que ele tem a ajuda no roteiro de Adriana Brunstein). E como ironia chega desavisada, a coragem de Casal aconteceu com um personagem que só existe em função do medo: Zé do Caixão. É ele quem está ilustrado nas páginas de Prontuário 666: os anos de cárcere de Zé do Caixão (Conrad, R$ 24), em um trabalho que, à semelhança do ilustrado, se fragmenta para se juntar e é tão cortante que você não sabe ao certo onde começa Zé do Caixão e onde termina Samuel Casal. O artista foi o primeiro a ser chamado para participar de um projeto que, a princípio, reuniria vários autores, e terminou pegando o pacote completo.
“Fui o primeiro a ser contactado e recebi a última história do álbum pra fazer, justamente por causa das características do meu trabalho. Como acabei fazendo todo o álbum, transformei alguns argumentos e criei outros pra fazer uma história só. Eles (o pessoal da Conrad) me procuraram por causa desse preto-e-branco que tenho, acharam que cabia bem com meu trabalho. Não tive que me adaptar ao personagem, fui escolhido porque tinha características que combinavam com ele. Zé do Caixão já passou pelos quadrinhos, mas sempre com um estilo mais clássico de desenho. Quando peguei o personagem, senti que podia fazer algo diferente porque ele é muito gráfico, mais gráfico que o Batman”, explica o artista.
Dos argumentos que Casal recebeu, alguns foram jogados fora e ele admite que começou tudo sem qualquer linearidade. Levando-se em conta que seu trabalho é praticamente todo feito direto no computador, é realmente de impressionar a habilidade que ele teve em criar um roteiro com começo, meio e fim bastante sólidos, partindo de uma sórdida história sobre tatuagens (o que não vem casualmente, sendo Casal também um tatuador), passando por algumas cenas fortes dentro do cárcere onde Zé do Caixão está “preso” desde 1968 até 2008 (quando ele é libertado em seu novo filme Encarnação do demônio), até a revelação do “verdadeiro” nome do personagem de José Mojica Marins que, de macabro, terminou virando cult (uma sina edwoodiana).
“O máximo que acontece num álbum é eu pegar uma folha de ofício e marcar a dimensão dos quadros e fazer um rabisco tosco, isso quando estou com o texto que quero distribuir e com o número de páginas que vou usar. Mas isso tudo é redimensionado depois. Troco quadro, volto página, é tudo mesmo direto no computador, sem rascunho nem nada, no mouse”, garante o ilustrador, vencedor de oito prêmios HQMix e mestre maior na arte do desenho vetorial, mérito seu e do Freehand, seu software de cabeceira.
Casal confessa que fazer Zé do Caixão em quadrinhos foi um desafio pessoal. Autor de algumas HQs curtinhas, publicadas em revistas multiautorais (incluindo a pernambucana Ragu), ele admite uma “birra” em criar um trabalho só seu. Sob pressão – quando recebeu a missão de escrever este álbum sua mulher estava grávida de seis meses e ele precisava terminar tudo antes de Bruna nascer –, o artista não apenas conseguiu concluir a “encomenda”, como lançou um trabalho que deve chamar a atenção particularmente por um visual, esse sim, verdadeiramente assustador. No bom sentido do mau.
Texto publicado originalmente no Jornal do Commercio (27.07.2008)
A Conrad disponibilizou aqui as primeiras páginas do livro
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